Uma história que me marcou em seis anos de hospital é até difícil de escolher porque são muitas: tanto pessoais quanto profissionais.

São muitos pacientes, muitos casos… Eu brinco que da tragédia à comédia, já vivi de tudo um pouco. Vários tipos de histórias.   

Mas tem um paciente em especial que gostaria de falar da minha relação de cuidado com ele. É uma pessoa que tenho o contato até hoje e, recentemente, um ano depois da passagem dele pelo Hospital Célio de Castro, tive notícias.

Ele fez contato para me dizer como anda a vida dele… E fico emocionada a cada contato porque ele passou por uma transformação gigante na vida.


Entrei nesse caso com a equipe de saúde mental para ajudar a manejar as agitações desse paciente, que precisava aceitar o tratamento, mas queria ir embora a todo custo.

Foram dias muito difíceis, de uma abstinência de crack, em que ele fazia um uso muito importante. Era hostil e agressivo. Em todos os andares pelos quais passou ficou conhecido como o homem que quebrava janelas tentando fugir.

Com muito custo consegui fazer um combinado com ele. Na saúde mental, essa técnica é muito utilizada, a de fazer combinados com os pacientes.

Foi um acordo simples: o que eu poderia fazer por ele para que, nos dias que estivesse muito difícil lidar com a abstinência, ele não quebrasse nada?

E ele me pediu um wafer.

Também é muito comum na saúde mental o profissional se deparar com o desejo de pacientes por comidas. Em abstinência eles ficam mais famintos.

A partir desse combinado, tudo mudou e estabelecemos uma relação de confiança e, assim, outros combinados passaram a ser possíveis e já não foi mais necessário contê-lo.

Quando estava difícil, ele nos procurava e pedia wafer, mas passou a pedir também por medicação, por escuta…

Esse paciente é um homem de 40 e poucos anos que chegou aqui com uma insuficiência cardíaca gravíssima.
 
Paralelamente a essa evolução, a visão da equipe sobre ele foi mudando. De um cara hostil passou a ser visto como alguém amistoso. A equipe começou a ficar mais desejosa de estar perto dele.

E era um caso de uma internação que se prolongou porque ele tinha uma condição difícil de alta. Não podia ir para rua, que era onde ele morava até então, porque tinha rompido os laços com a família pelo uso de drogas e tinha muito problema com tráfico e conflito no território.

Nós, da equipe, fomos insistindo no contato com a família até que essas irmãs apareceram e vieram visitá-lo. Foi uma longa caminhada para que a família se reaproximasse, para que pudesse conhecer esse novo irmão, de um novo lugar: abstinente e tratado.

A família pensava que o problema dele era só a droga, mas, na verdade, ele tem um transtorno psiquiátrico que nunca havia sido tratado.

Foi bonito presenciar a virada, quando o wafer começou a ser trazido por uma das irmãs durante as visitas.  Essa irmã que não queria recebê-lo em casa por conta de todos os conflitos no território, com a filha e com o marido, aceitou ele de volta.

Vira e mexe ele me manda mensagem com as fotos dele comemorando aniversários em casa, do retorno para o coral da igreja… Cantar era algo que ele gostava desde criança.

A gente está sempre aprendendo na profissão, é claro, mas esse caso me marcou muito porque vi, na prática, que o vínculo trata, que o vínculo é um dos principais recursos terapêuticos.

Hoje eu sei que não foi o wafer, mas foi a relação de confiança estabelecida a partir disso, de um combinado feito e cumprido, que possibilitou a conexão para o tratamento.

Uma equipe grande, um trabalho multiprofissional, em que tive a honra de participar de uma mudança tão importante para vida de uma pessoa e para a família. Não sei o que será da vida dele daqui para frente, mas esse um ano depois da alta já foi muito especial. Vejo o quanto ele valoriza isso e sempre nos agradece muito.

O que eu mais aprendi com a história desse paciente é que não existe caso perdido, mesmo quando a pessoa está sem perspectiva.

Era um homem que estava vivendo nas ruas, afundado nas drogas, com relação familiar rompida, com insuficiência cardíaca. Eu pensava: o que que vai ser dele? Lá dentro tinha esse desejo de cantar, de voltar para casa, que a família o acolhesse, e desse uma nova chance. 

Ele conseguiu!

Amanda Ferreira