O grande desafio da pandemia foi a quantidade de perda que a gente teve. Foi muito triste. A gente às vezes dava uma notícia para alguém que estava perdendo um pai e a pessoa tira uma declaração de óbito do bolso para falar que acabou de perder a mãe ao mesmo tempo. Isso foi muito difícil para o profissional da saúde.
Uma das histórias que mais me marcou aqui no hospital ao longo da minha trajetória na instituição, desde 2017, foi a história de um paciente que ficou muito tempo dentro do CTI por conta da Covid-19 e que teve de fato uma forma grave da doença. Ele ficou dependente do ventilador mecânico por muito tempo.
Esse paciente eu cuidei dele enquanto médico intensivista e cuidei dele também enquanto médico do cuidado paliativo.
Na época da pandemia, criamos um projeto, o Música no CTI, em que os pacientes podiam escolher uma canção que nós, da equipe multiprofissional, tocávamos e cantávamos para eles. Quem estava inconsciente, também ganhava música que os familiares pediam.
A iniciativa surgiu exatamente com a ideia de que era necessário tirar um pouco o peso de tanta dor que a pandemia trouxe. De trazer, de fato, o paciente para vida, de desfocar um pouco da situação do manejo da doença.
A gente enxerga esse projeto como um chamamento para vida e percebe que, de fato, toda vez que a gente chega dentro de um box do CTI e pergunta para o paciente o que ele gosta de ouvir, é um resgate para a vida lá fora com bons efeitos ao engajamento no tratamento. Não temos dúvidas de que esse momento mais poético tem um efeito terapêutico importante.
E foi um projeto que, de fato, toda a equipe abraçou enxergando essa possibilidade de cuidar de uma maneira diferente.
Em um desses momentos, esse paciente que estava ao lado do leito em que nos apresentávamos e começou a balbuciar a letra, mesmo traqueostomizado, mesmo em ventilação mecânica.
E aí a gente reparou essa emoção dele e a atenção que ele estava tendo com o paciente ao lado. Isso fez com que, na sequência, o grupo fosse para a assistência direta a ele.
O nome desse paciente é Túlio. E esse fato foi interessante porque ele conseguiu usar uma forma diferente de se comunicar e de buscar forças para lutar contra a doença.
Ele melhorou depois desse episódio, obviamente não só por isso, mas a gente considera esse fato importante para o tratamento dele.
Quando a cânula de traqueostomia foi retirada, o Túlio conseguiu cantar a música que ouvira naquele dia, A hora de amar, de Gusttavo Lima. E foi muito reconfortante para gente… Ao longo da música, ele mesmo agradecia à equipe do CTI. Foi muito legal, foi muito bom participar dessa trajetória.
O Túlio venceu a Covid-19 e conseguiu ter alta do hospital apesar de uma trajetória difícil. No dia da alta, sua família o esperava na porta do hospital e cantaram para ele. Foi muito bonito. Inclusive, ele voltou ao Hospital Célio de Castro para nos visitar e agradecer o cuidado de toda equipe.
Quem trabalha no cuidado paliativo, uma das coisas que a gente, às vezes, fica um pouco aflito é por que geralmente as pessoas vinculam o cuidado paliativo com o fim de vida, com o dar errado.
A gente pensa diferente. Todo mundo que tem uma doença que ameace a vida tem que ser cuidada de maneira ampla. O cuidado paliativo é muito isso, não é para falar do final é para falar de uma trajetória difícil que terá um fim, mas que às vezes o final pode ser uma coisa boa, igual foi a história desse paciente jovem.
E essa foi uma história que se repetiu muito ao longo da pandemia E o que gerou de aprendizado grande para o meu dia a dia foi exatamente a importância de, como médico, não focar só na doença na hora de cuidar, mas para a pessoa que está doente. Quem eles são antes da doença?
Bruno Resende