Kelly Lopes de Souza Rangel, Paula Madeira e Frederico Rafael dos Santos integram a equipe da Agência Transfusional do HMDCC (Foto: Álvaro Miranda)
“Eu acho que já até perdi as contas de quantos vezes fui internado aqui no Hospital, acho que esta é a sexta vez e sempre torço para sair a vaga para cá. Vocês estão superqualificados para tratamento da doença falciforme”, afirma o estudante universitário Willian Souza Dias Pinheiro, de 24 anos.
Apesar da torcida de Willian, não apenas ele, mas todos os pacientes adultos e adolescentes de Belo Horizonte que têm doença falciforme e necessitam de internação são transferidos das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) para o Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro (HMDCC), que, desde 2018, se tornou uma das referências na capital mineira para internação decorrente de complicações da doença falciforme.
A doença falciforme é mais frequente em povos africanos, mas está presente em todos os continentes como consequência das migrações populacionais. Dados do Ministério da Saúde apontam que de 25 mil a 50 mil pessoas no Brasil têm a doença falciforme.
A anemia é a principal manifestação da doença e é percebida pela palidez na pele e nas mucosas. “A doença falciforme é uma condição genética e hereditária que resulta em uma malformação da hemoglobina que ocasiona a alteração do formato da hemácia para uma estrutura semelhante a uma foice”, afirma a médica hematologista e referência técnica da Agência Transfusional do Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro, Paula Madeira.
A médica explica que as hemácias em forma de foice causam oclusão dos vasos sanguíneos e são propensas à hemólise (ruptura da membrana), levando a crises de dor de forte intensidade, isquemia nos órgãos e outras complicações sistêmicas.
Obrigatório em todo o país desde 1992, o teste do pezinho, realizado preferencialmente entre o 3º e 5º dia de vida da criança em todos os Centros de Saúde de Belo Horizonte, detecta doenças metabólicas, genéticas ou infecciosas, incluindo a doença falciforme. “Quando a doença falciforme é diagnosticada, a criança é direcionada a um Centro de Referência para ser acompanhada e evitar possíveis complicações da doença. Em Minas Gerais, a Fundação Hemominas é referência ambulatorial para esses pacientes”, afirma Paula Madeira.
O papel do hospital
O estudante Willian Souza Dias Pinheiro faz o controle semestral da doença falciforme no ambulatório do Hemominas. Ele conta que passou por um longo período, dos 12 aos 20 anos, sem precisar de nenhuma internação. No entanto, desde os 21, começou a ter crises constantes que necessitam de uma abordagem hospitalar. “As crises vaso-oclusivas dolorosas, também chamada de crises álgicas, são a manifestação aguda mais comum da doença falciforme e a maior causa de hospitalização dos pacientes falcêmicos”, afirma Paula Madeira.
Alguns fatores podem desencadear a crise álgica, cuja principal característica percebida pelo paciente é a dor, como infecção, febre, desidratação, exposição ao frio, uso de bebida alcóolica. No entanto, Paula Madeira cita outros menos frequentes que incluem exercício físico extenuante e condições emocionais.
O estudante Willian relata uma dor tão forte na perna, causa de sua última internação, que o impedia de andar. “A crise álgica é causada devido à isquemia e hipóxia (falta oxigenação suficiente para os tecidos) decorrentes da obstrução do fluxo sanguíneo pelas hemácias falcizadas. Em geral duram de quatro a seis dias, mas podem persistir por semanas”, salienta.
No Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro, o paciente com doença falciforme é acolhido pela clínica médica. O tratamento inclui analgésicos, hidratação venosa e abordagem multiprofissional com a psicologia, nutrição, serviço social, terapia ocupacional, hematologia, dependendo de cada caso.
Quando a crise álgica é grave ou o paciente precisa ser submetido a um procedimento cirúrgico, o tratamento é mais complexo pela necessidade de transfusão de sangue. No laboratório de Imunohematologia da Fundação Hemominas é realizada a fenotipagem do sangue dos pacientes com doença falciforme através de um estudo da hemácia. “São feitos vários testes para identificar os antígenos e os anticorpos que o doente possui. As transfusões de sangue são guiadas pelo resultado da fenotipagem, que muitas vezes podem ser essenciais no tratamento da doença falciforme”, observa Paula Madeira.
E é esse um dos papeis da Agência Transfusional do Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro. “Assim que um paciente com a doença falciforme dá entrada no Hospital, a Agência é imediatamente avisada. Nós fazemos o contato com a Fundação Hemominas para saber se o paciente possui fenotipagem e damos suporte especializado aos médicos clínicos na condução de pacientes com casos complexos, que podem precisar de transfusão”, explica Paula Madeira.
Por duas vezes, em internações diferentes no Hospital Célio de Castro, Willian Souza Dias Pinheiro recebeu transfusão. O estudante afirma: “na minha opinião, o suporte que recebemos aqui não tem igual”, relata.
De janeiro a agosto de 2019, o Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro registrou 45 internações de 39 pacientes com doença falciforme. “Dois desses pacientes já reinternaram nesse período”, afirma a biomédica da Agência Transfusional do Hospital, Kelly Lopes de Souza Rangel.
Segundo ela, desses 39 pacientes, 14 precisaram de transfusão de sangue e receberam concentrado de hemácias fenotipadas totalizando 33 bolsas. “Dos 14 pacientes que receberam transfusão aqui no Hospital, oito já possuem anticorpos irregulares sendo necessário bolsas fenotipadas também para esses anticorpos, o que dificulta ainda mais para conseguir fenótipos compatíveis. Dessa forma, é fundamental a sensibilização constante de doadores de sangue”, salienta a biomédica.
Paula Madeira ainda reforça que o cuidado precisa ser direcionado e as transfusões bem indicadas. “Transfundir bolsa de sangue comum pode ser perigoso devido ao risco de reações transfusionais graves e também pode dificultar transfusões futuras”, salienta.
Fluxo de atendimento na Rede SUS-BH
O fluxo assistencial da linha de cuidado da doença falciforme em Belo Horizonte tem como referência de atendimento para eventos agudos em crianças com doença falciforme o Hospital Infantil João Paulo II. Casos de eventos agudos em gestantes e casos de priapismo em homens (adolescentes ou adultos) a referência é o Hospital Metropolitano Odilon Behrens.
Já os eventos agudos de adolescentes e adultos atendidos nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) são encaminhados prioritariamente para o Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro e casos que exigem especialidades não existentes no HMDCC são atendidos em outras unidades hospitalares de acordo com a grade de urgência”.
Segundo a Gerência da Rede Complementar da Secretaria Municipal de Saúde de BH (SMSA-BH), no final de 2018, a Secretaria de Saúde, através da Subsecretaria de Atenção à Saúde (SUASA) e da Diretoria de Atenção à Saúde (DIAS), instituiu um Grupo Técnico de Profissionais da SMSA-BH para a construção do fluxo assistencial da linha de cuidado da doença falciforme em Belo Horizonte.
Em parceria com o Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico da Faculdade de Medicina da UFMG (NUPAD) e a Fundação Hemominas, o objetivo é ofertar a integralidade do cuidado, em tempo oportuno, através de profissionais capacitados e qualificados, em todos os pontos de atenção da Rede SUS BH. O fluxo destaca o cuidado ao paciente desde a realização do teste do pezinho nos Centros de Saúde, com acompanhamento das Equipes de Saúde da Família, o acesso prioritário às consultas e exames especializados até a necessidade de atendimento nas Unidades de Pronto Atendimento e Hospitais.
A Gerência da Rede Complementar/SMSA-BH destaca ainda que o fluxo assistencial da linha de cuidado da doença falciforme, da Rede SUS-BH, foi apresentado e validado com anuência da Associação de Pessoas com Doença Falciforme e Talassemia de Belo Horizonte(DREMINAS BH).