Eu trabalho no Hospital Metropolitano Dr. Célio de Castro, sou apoio familiar e atuo no necrotério.
A pergunta que as pessoas mais me fazem é:
– Moça, como você fica aqui sozinha? Você não tem medo? Ao que respondo:
– Não, a gente tem que ter medo das pessoas vivas, não das mortas.
Acontece de às vezes as pessoas errarem de andar, chegar aqui no necrotério e subir correndo, com medo.
Depois que eu entrei para o ramo funerário a minha vida mudou. Eu costumo falar que as pessoas, todo mundo em geral deveria trabalhar em um hospital ou em uma funerária para dar valor à vida.
É tão gratificante, tão gratificante, que as pessoas que eu atendo se tornam meus amigos. No meu WhatsApp é cheio de mensagens de pessoas me convidando para festa, nascimento de menino, tenho um chá de bebê para ir agora de uma família que eu atendi.
A primeira coisa que precisa ser dita é que a pessoa que vem a óbito merece respeito. Quando um paciente morre, eu chego com todo cuidado no leito, a equipe de enfermagem me ajuda e mover o corpo, colocar na maca.
Eu converso com o corpo:
– Licença, este é o meu trabalho.
Repito esta frase em todos os meus atendimentos.
E saio da enfermaria empurrando a maca devagarzinho, cuidadosamente, como se eu estivesse conduzindo uma pessoa viva. Tenho todo o cuidado de colocar de arrumar direitinho, de identificar, de colocar um lençol por cima. Quando desço o elevador, rezo uma Ave Maria e um Pai Nosso para que tenham um bom descanso.
Aqui, no Hospital Dr. Célio de Castro, eu vivi muitas histórias de luto.
Mas teve uma em especial que me marcou muito. Foi a morte de um rapaz de 27 anos, vítima de um acidente de moto.
Na verdade, um carro veio na contramão, a moça estava conversando no celular e pegou ele de frente. Ele chegou aqui transferido, passou por uma cirurgia, mas infelizmente não resistiu.
É a história de um jovem que tinha uma vida toda pela frente, interrompida bruscamente. Algo difícil de aceitar.
Os pais me abraçavam e repetiam assim:
– O que que fizeram com meu filho? O que fizeram com o meu filho?
Eu não costumo deixar a pessoa entrar no necrotério para ver o corpo. Primeiro por que podem ter outros corpos e, segundo, que às vezes pode ter uma doença infectocontagiosa e é perigoso para a própria pessoa. No meu caso, utilizo equipamento de proteção.
Mas essa mãe praticamente se ajoelhou sob os meus pés e me pediu para ver o filho. Garanti a segurança para que ela pudesse vê-lo. Ela me abraçou, me agradeceu tanto, que carrego esse carinho comigo até hoje.
Após o sepultamento, ela me mandou um vídeo para mostrar o tanto que o filho era querido, ele era cruzeirense e a torcida do Cruzeiro estava no cemitério, todo mundo com bandeira, homenageando aquele rapaz.
Naquele dia quando saí do plantão e fui para casa, eu não dormi, não descansei, fiquei com a família na cabeça.
Histórias como essa fazem a gente pensar na fragilidade da vida que se esvai por um ato de imprudência e dilacera uma família inteira.
Foi uma história que levou um pedaço de mim também. Ela me tocou de uma forma diferente porque tenho um filho da mesma idade que também é motoqueiro. Fiquei muito envolvida e acompanhei a família até depois do sepultamento.
Costumo dizer para as famílias enlutadas que atendo que o luto ele é igual o mar: vai ter dias que a maré estará mais alta e a pessoa vai querer ficar sozinha para chorar, sofrer e lembrar.
Mas terão dias que a maré mais vai estar mais baixinha, mais calma e a pessoa vai lembrar daquele ente querido com muito carinho, vai se sentir mais tranquila acreditando que ele está em um lugar melhor.
O que despertou minha vontade em participar deste projeto – o Sua história inspira – é mostrar para as pessoas que o meu trabalho é um trabalho lindo. As pessoas acham que é um serviço triste porque cuidamos de pessoas enlutadas. Sim, realmente somos tocados pela dor do outro, somos seres humanos capazes de sentir empatia, de dar o ombro para as famílias em um momento difícil. Mas é também gratificante quando encerramos um atendimento e escutamos:
– Se não fosse por você, acho que não conseguiria. Obrigada, que Deus te dê saúde para você continuar esse trabalho.
Esse reconhecimento é muito importante.
Valéria Morais Fernandes