Minha história aqui no Hospital Célio de Castro começou em novembro de 2015, um pouco antes da inauguração, em dezembro. Desde então, estou no hospital à frente do CTI.

Existe, sim, uma história que me marcou muito e aconteceu em um passado recente. Trata-se de uma paciente que veio transferida de uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte em um contexto de pós-parada cardíaca, com quadro neurológico de saúde muito grave.

O esposo dessa paciente era caminhoneiro e, quando isso aconteceu, estava em viagem ao Nordeste do Brasil a trabalho. Portanto, não acompanhou de perto o que havia acontecido.

Essa paciente chegou aqui acompanhada pelo enteado que ficou responsável por sua internação. E foi aí que começou a saga e a angústia que me fizeram rever vários conceitos.

De uma comunicação que começou mediada por um familiar: o enteado repassava as informações para a filha da paciente que, por sua vez, transmitia ao padrasto.

Quando o marido da paciente chegou a BH, veio direto ao hospital visitar a “princesinha”, como ele chamava sua esposa. Por uma série de equívocos, tanto por parte da equipe quanto da família, quando a história chegou até mim já tinha o veredito de que existia um conflito familiar e um esposo agressivo.

Essa paciente – vou chamá-la de Maria para preservar a identidade dela – era um caso grave, com chance mínima de reabilitação, elegível aos cuidados paliativos que estava acompanhada de um enteado que tinha medo de contar a verdade à família pelo fato de o pai estar viajando a trabalho, de bater o caminhão…

Quando esse pai chegou a Belo Horizonte veio direto ao hospital sem sequer conversar com o filho, muito ansioso para ver a esposa e ter notícias. No primeiro contato, na recepção, foi informado que o horário de visitas no CTI era de 14h às 14h30. Fomos saber depois que ele chegou aqui com 40 minutos de antecedência, mas conseguiu ser atendido 10 minutos antes de o horário da visita começar. Quando subiu, estava cinco minutos atrasado e, na cabeça dele, estava perdendo tempo de visita, o que não era verdade já que permitimos a visita ampliada no setor…

Quando ele chegou ao CTI, nosso secretário pediu que ele aguardasse um pouco, e foi a gota d´água para o Sr. João (nome também fictício). A segunda interação com nosso profissional já foi de uma chamada mais robusta, vamos falar assim, e ele entendeu que tinha sido desacatado.


E aí começou uma reação em cadeia, o secretário subiu o tom de volta dizendo que ele tinha 20 minutos para ficar lá dentro e que não ia ficar nenhum minuto a mais.

O Senhor João entrou, foi lá visitar sua “princesinha” sem saber o que ia encontrar e se deparou com sua esposa entubada, cheia de aparelhos, monitores, bomba de infusão… A equipe já havia acionado a psicologia e nesse meio tempo, ele sai de dentro do leito para abordar a equipe, saber o que estava acontecendo e a informação já havia chegado de que ele era agressivo.

Antes de ele conseguir perguntar qualquer coisa, a minha equipe já avisou “você não você não pode sair de dentro do leito, você tem que ficar lá dentro do boxe, você está aqui só para visitar”.

A situação chegou a um extremo que era a de que que tinha um acompanhante de uma das pacientes nossas que estava “atocaiando”, o termo foi esse, que ele estava fazendo tocaia na porta do hospital e os profissionais estavam com receio que fosse para perseguir alguém. A própria enteada, filha da Dona Maria, entrou nessa pilha de que o Senhor João estava fazendo tocaia. Chegamos ao ponto de proibir a entrada do Senhor João no hospital por questão de segurança.

A situação foi tomando uma proporção que, de repente, me deu um estalo! Marcamos uma reunião com a então pessoa non grata, o Senhor João. E nisso chega o Senhor João e o meu mundo caiu de verdade, no sentido de como podemos ser injustos mesmo sem querer. 

Ele é um senhor baixinho, forte, se sentou na minha frente sem entender nada, perguntei o que estava acontecendo. Ele mostrou as mãos e falou: “Olha aqui doutor, estou com a mão toda calejada, o senhor acha que sou bandido?”.

Isso me deu um choque de realidade e eu falei: “Não, nós não estamos aqui para julgar.”, ao que ele retrucou: “desde o primeiro dia que cheguei no hospital estou sentindo que sou tratado como bandido.”

Antes de conversar com ele nesse momento tinha procurado saber das situações em que levaram a equipe a pensar nos riscos que ele representava. E apareceu, inclusive, uma fala da filha Maria de que haviam câmeras na casa que ele colocou para vigiar a esposa. Chegou ao ponto de mencionarem que a paciente era mantida em cárcere privado, que ele insistia em pegar o celular da esposa fazer retirada de dinheiro.

Quando falei com ele das câmeras, o Sr. João explicou que tinha colocado porque a esposa ficava muito sozinha em casa, que ele era caminhoneiro, viajava muito e às vezes ela não atendia o telefone e ele aciona a câmera para ver se estava tudo bem. Disse que colocou na porta de casa porque não tinha onde guardar o caminhão, então quando estava na cidade dele deixava o caminhão na rua e as câmeras eram para tomar conta.E chorou, contou que nunca tinha pagado uma multa na vida, que trabalhou como caminhoneiro a vida toda e que não entendia porque estava sendo tratado com hostilidade.

Só me restou pedir desculpa. Fomos juntos para dentro do CTI e fui conversar com ele sobre a situação toda. Dentro do leito expliquei o que estava acontecendo, e ele só nos agradecia. Cada vez que ele nos agradecia ficava mais pesada a situação.

Levo esse caso para todos os lugares que eu vou, eu levo para minha casa, eu levo para mesa de jantar, eu levo para o churrasco com os amigos. Eu sempre conto essa história. E o que mudou na nossa vida aqui no Hospital Célio de Castro?

O dia que eu conseguir ver as famílias todas dentro do CTI, o tempo inteiro com a gente, aí me dou como convencido de que minha missão está tranquila. Quer ficar? Quero, então tem jeito!

Eu acho que se eu conseguir, com essa história, comover todo mundo ou pelo menos provocar uma reflexão de que quando alguém chegar perto de você, no seu trabalho, e perguntar alguma coisa lembre-se dessa história e ouça com calma.

Muitas vezes é coisa simples, mas se não for coisa simples é simplesmente dizer que não sabe a resposta, mas que vai procurar saber. Explique que está tentando dar o seu melhor.

Hoje me considero uma pessoa mais centrada no sentido de escuta, no sentido de não fazer julgamentos ou cultivar preconceitos, de tomar como verdade falas que são de terceiros. “Quem conta um conto aumenta um ponto”, essa é a melhor fala da minha avó.

Luidy Cardoso
médico e gerente da linha de cuidado ao paciente crítico