Eu já era médica do cuidado paliativo quando esta história aconteceu.

Foi na pandemia, os profissionais de saúde atuavam muito com o sofrimento familiar e no acompanhamento do paciente pós-Covid, naquela fase difícil da reabilitação.

O paciente tinha mais ou menos 40 anos, era segurança e pegou a doença. Em princípio, uma forma leve da Covid-19, só sintomas gripais…

Mas um dia em casa ele sentiu uma falta de ar súbita, ficou roxo e desmaiou. A esposa dele – que era uma mulher bem jovem de uns 30 anos mais ou menos – foi quem o socorreu. Ela fez respiração nele, ela massageou, ela ligou para o Samu, ela deu conta de mantê-lo vivo até o socorro chegar.

Esse paciente teve um tromboembolismo pulmonar muito grave, bilateral, uma condição com risco de óbito gigante!

Ele foi levado primeiro para um atendimento de urgência e depois transferido aqui para o CTI do Hospital Célio de Castro. Ele foi cuidado e teve alta para o andar da enfermaria clínica.

A esposa ficou muito feliz!

Quando a gente começa a fazer um acompanhamento de um paciente, perguntamos sobre a história de vida dele, a biografia do paciente.

A esposa me contou que eles tinham uma filhinha de 2 anos e que essa menina nasceu com paralisia cerebral e teve muitas sequelas, era traqueostomizada, usava gastrostomia. Na casa onde a família vivia havia, então, todos os aparelhos necessários para cuidar da filha.

E que ela tinha sido treinada no hospital que a filha nasceu para cuidar dela. Era uma mãe que sabia aspirar, que sabia quando tinha que ligar o oxigênio ou não, ela tinha máscara AMBU – bolsa de reanimação manual -, tinha oxímetro, estetoscópio.

Ela cuidava da filha em casa.

E me contou também que, logo quando o esposo internou, a filhinha também pegou Covid-19. Só que essa filha, por ter uma condição de nascimento muito grave, uma condição respiratória difícil, ela teve um quadro muito grave da doença.

A menininha foi para o CTI. A filha dela morreu.

Ela me contou toda essa história e fez a pergunta de 1 milhão de dólares.

– Doutora, eu conto pra ele? A senhora acha que eu conto para ele?

Eu pensei e falei:

– Ele vai perguntar por ela e vai querer notícias. Não adianta mentir, mas vamos pensar em um momento melhor para que ele sofra menos e esteja em uma condição melhor até de entender que está acontecendo?

Esse paciente passou alguns dias na enfermaria, vinha melhorando, estava tentando se reabilitar, mas ainda não andava. No máximo, ficava sentado escorado. Também estava sem comer, traqueostomizado, mas perguntando muito da filha, muito mesmo. Pedia à esposa que a trouxesse, que fizesse videochamada…

E a esposa veio falar comigo novamente.

–  Doutora, está muito difícil porque ele pergunta muito pela filha.

– Você quer contar?, indaguei.

Ao que ela me respondeu que sim e prometi:

– Estarei ao seu lado.

Às vezes as cenas tristes também são poéticas.

Ao dar a notícia da morte da filha, de 2 anos, a esposa falou com o paciente uma coisa maravilhosa. Ela, que era uma mulher muito religiosa, falou assim com ele:

– Ela se foi, meu amor, ela foi ficar do lado do pai. Mas ela foi porque já tinha cumprido o que tinha que cumprir aqui na Terra. Eu só consegui te salvar quando você teve a embolia porque eu sabia tudo o que eu sabia porque eu tinha todos os aparelhos em casa, esses aparelhos eram dela, da nossa filha. Se ela não tivesse vindo com a condição que ela tinha, se eu não soubesse, se eu não tivesse sido treinada para fazer tudo que eu fui treinada a fazer, você hoje não estaria vivo. Então nossa filha já foi porque o plano era ela vir, me ensinar isso tudo para que eu pudesse salvar sua vida.

Enquanto ouvia a notícia, ele ficou com aquela cara de desespero, de dor.

– Morreu? Nossa filha morreu?

A esposa começou a chorar e falou.

– Sim, meu amor, nossa filha morreu.

E foi aquela tristeza toda dos dois…

Ao mesmo tempo que foi muito triste, foi muito bonito, sabe? Foi muito bonita a forma como ela trouxe sentido para o que ela viveu, a forma como ela conseguiu ressignificar, a força dela como esposa e como mãe.

É difícil lidar com todas essas dores como profissional de saúde, não é fácil. Lidar com sofrimento diariamente, sofrimentos múltiplos. Às vezes sofrimentos que a gente não consegue aliviar 100%.

Eu tenho para mim que existem algumas estratégias como cuidar de si, da sua alma, alimentar nossos sagrados. O que que é meu sagrado? A minha família, que é quem me faz ter paz, alegria, disposição de olhar para a vida com motivação. Também adoro comer e adoro dançar. Estou sempre alimentando esses meus sagrados.

Eu penso: a vida não é só dias vividos, mas o que eu ponho nesses dias que fazem com que valham a pena? O que que dá sentido, significado para nossa existência?”

Alimentar os nossos sagrados nos fortalecem para dar conta das mazelas da vida, as nossas próprias e as dos outros.
 
Em segundo lugar,
que foi uma coisa que eu aprendi que eu não sabia, existe um lugar que é o lugar da empatia, que é quando você consegue perceber o sofrimento do outro. É aquele se incomodar pelo sofrimento do outro. Mas existe um passo além da empatia, que chama compaixão.

A compaixão é você se incomodar pelo sofrimento do outro e aquilo mover algo dentro de você para que você faça algo para aliviar aquele sofrimento. E por mais que a gente não consiga aliviar 100%, o mínimo que for que a gente consiga fazer nos alimenta a continuar.

A compaixão ela é treinável e eu tento me manter compassiva diariamente. E quando eu busco essa compaixão e consigo – mesmo que mínimo -, isso me dá uma sensação de paz, de bem-estar, de sentido. Encontrar sentido no que a gente faz vai alimentando a gente. 

Esse aprendizado tem me proporcionado ser um ser humano mais completo. Antes de ser médica, eu sou filha, eu sou esposa, eu sou mãe, eu sou irmã. E conseguir enxergar o outro na sua forma multidimensional, não só física como psíquica, social, religiosa, transforma a gente em uma pessoa melhor, com certeza.

Ana Carolina Ferreira Brant