São muitas, muitas, muitas vivências que marcam a trajetória do profissional de saúde dentro de um hospital, mas que também marcam a vida da gente.

Eu cheguei aqui no Hospital Célio de Castro em 2019 e, no ano seguinte, já veio a pandemia…

Por isso, queria falar de uma história que aconteceu um pouquinho antes do dia 20 de março de 2020. Para ser bem exata: dois dias antes de a gente entrar naquela loucura de isolamento.

Foi um período muito difícil para mim que sempre trabalhei abrindo as portas e, de repente, tive que fechá-las. E fechar portas é fechar possibilidades.

Então!

Eu tive um paciente no CTI, o Sr. Hércules que não residia em Belo Horizonte, mas precisou vir para cá em função de um câncer.

Ele foi avaliado pela equipe de cirurgia da instituição que explicou a ele que, diante da sua condição de saúde, não existiam possibilidades curativas para a doença que o acometia.

O Sr. Hércules compreendeu o fato muito bem e com muita tranquilidade procurou a equipe de psicologia para dizer que não gostaria de falecer dentro de um hospital.

Lembro de ele me contar que tinha uma mãe muito idosa com quem queria conversar, falar sobre a doença e se despedir. E me falou também do desejo de aproveitar os filhos…

Fiquei em um impasse já que ele era um paciente internado dentro de um CTI, ou seja, em uma condição crítica, e teoricamente não existe um fluxo no hospital de um paciente sair da terapia intensiva para casa.

Confesso que me deu um aperto no coração porque eu sabia que era importante, principalmente para ele, o protagonista dessa história e desse cuidado.

E confesso ainda que fiquei muito apreensiva em tentar viabilizar o desejo do Sr. Hércules porque significava que ele ia retornar para casa, outra cidade, de ambulância.

Obviamente alguns colegas também ficaram apreensivos sem a certeza de que era o certo a se fazer. Existiam questões importantes que precisavam ser levadas em consideração em um caso como o dele: a dor, o controle dos sintomas e as intercorrências que poderiam acontecer. E se ele não tivesse um suporte adequado às suas necessidades?


A equipe resolver tentar e criamos uma alternativa para que o nosso paciente pudesse receber alta da terapia intensiva direto para casa.



Em um tempo quase mínimo, mas com investimento e envolvimento de muita gente, conseguimos fazer contato com médicos que poderiam acolhê-lo e atendê-lo na cidade onde morava e que já conheciam um pouquinho do caso.

Era inegociável garantir sua segurança e construímos uma rede de contatos a quem o Sr. Hércules poderia recorrer em caso de necessidade.

E Conseguimos! Foi bonito ver ele ir para casa e viver seus últimos dias próximo de quem amava.

Na terapia intensiva a gente lida muito com essa questão da vida e da morte, com o desejo de salvar a vida o tempo inteiro…

Quando a gente consegue, e quando é possível que a gente faça, é importante se mobilizar para salvar as mortes também. É uma abordagem muito interessante e muito importante porque o processo de fim de vida não precisa ser com extremo sofrimento, com isolamento e longe da família.

Cada vez mais, os profissionais de saúde vêm entendendo que os pacientes têm histórias, hábitos, desejos, costumes, gostos e preferências. E eles também têm a doença e que todos esses elementos são importantes. Sinto que precisamos voltar o olhar para a pessoa que está doente para, de fato, prestar uma assistência em saúde de forma plena.

Os desfechos podem – e vão – ser muitas vezes negativos, mas as experiências precisam ser positivas. E isso é possível!

O Sr. Hércules foi viver seus últimos dias em casa e não isolado em um hospital, sem a possibilidade de receber visitas em função da pandemia.

Ele faleceu 15 dias depois que saiu daqui, mas nos mandava fotos da família reunida com quem mantivemos contato durante todo esse tempo. Em quase todos esses dias tivemos notícias dele, recebíamos vídeos e áudios. A família fazia questão de mostrar o quanto o esforço de leva-lo para casa tinha produzido um efeito positivo em todo mundo.

Nos cuidados paliativos a gente diz que intervenções como essa salvam mortes e salvam também a vida de quem fica porque o luto pode vir com mais serenidade.

Sim, em seus últimos dia de vida, o Sr. Hércules precisou retornar ao hospital da sua cidade para o controle de sintomas, mas era uma situação que havia sido esclarecida e construída juntamente com ele.  

O importante é que conseguimos transformar um momento de dor em algo único e genuíno.

Márcia Viegas, psicóloga