Arlindo, quarenta e sete anos, magro, um cabelo grisalho que escondia sua meia idade e ressaltava suas marcas. Sua história se cruzou à minha, após ter sido socorrido na estrada pelo Corpo de Bombeiros e transferido para uma unidade onde atuo. Caminhoneiro, de Mato Grosso do Sul, acabou passando mal em alguma curva montanhosa de Minas Gerais. Como fica o “fica em casa” quando sua casa se mescla à imensidão da estrada?
Era asmático, o que havia dificultado ainda mais o desmame ventilatório, entre um episódio de broncoespasmo e outro, eu passava muito tempo à beira do leito de Arlindo.
Com persistência, havia evoluído com boa resposta à terapia. Após dias de luta e incerteza, em uma sexta-feira após a definição e realização do trial de ventilação, extubei, com sucesso, o senhor Arlindo. Dia de extubação no CTI é sempre um dia feliz e gratificante. Larguei o plantão com a esperança nos ombros, mas até ela os pesava um pouco naquele tempo.
Meu plantão seguinte era no domingo, doze horas. Ansiosa, ao chegar, direcionei-me diretamente para o leito de Arlindo, foi quando vi que ele seguia, após quase quarenta e oito horas da extubação, fora da ventilação mecânica. Vitória.
Ao atendê-lo, auxiliei-o a sair do leito depois de tantos dias de importante imobilidade. Quando já assentado na poltrona, sentindo os pés tocarem o chão novamente, perguntei se ele gostaria de fazer uma chamada de vídeo para a família. Recurso que estava sendo difundido cada vez mais nos hospitais, já que as visitas presenciais não são possíveis para um paciente com Covid. Animada, já sacando do bolso o tablet da instituição, fiz a proposta. Ele, com dificuldade, levou o tronco pouco a frente, deixando o encosto da poltrona e esfregando repetidamente as mãos uma a outra, recusou.
Fiquei sem entender. Arlindo era um dos primeiros pacientes que eu havia extubado no CTI Covid, eu ainda não sabia, depois a experiência me faria ver que era muito comum os pais e mães que trazem no corpo o estigma de brasileiro guerreiro que dá conta de tudo, recusarem as chamadas de vídeo. A recusa não era a mim, tão menos à família. Era a recusa de deixar revelar sua fragilidade, sua dependência de cuidado, sua comum humanidade.
Conversamos por um tempo:
– Não quero que eles me vejam desse jeito.
– Mas o senhor está tão bem!
Ele se olhou como quem não reconhecia o próprio corpo. Eu me olhei como quem não reconhecia as próprias palavras, engoli seco, uma a uma.
“Tão bem…”
Mudei o discurso, expliquei por tudo que ele havia passado e tudo que ele já havia vencido. Por efeito dos muitos sedativos, ou por alguma misericórdia, os pacientes não se lembram de muita coisa dos dias sedados e intubados.
Depois de algum tempo, ele então solicitou a chamada. Entrei em contato com a esposa, a fim de prepará-la, expliquei primeiro que seu marido ainda usava alguns dispositivos como catéteres e sondas, e que estava visivelmente mais emagrecido. Ela consentiu e então os coloquei em contato.
Arlindo conversava com a esposa e com o filho. Chorava. Perguntou sobre a filha e por que ela não estava no vídeo, foi quando a esposa explicou que ela e o filho mais velho haviam viajado para Minas, para que, mesmo sem poder realizar visitas presenciais no hospital, se sentissem mais perto dele.
A conversa rumou para os lados burocráticos, onde será que estava o caminhão, os pertences? Um amigo da família, também caminhoneiro, já havia dado jeito nisso, relatou a esposa. Seu Arlindo repetiu mais uma meia dúzia de orientações sobre os cuidados com a máquina e a carga. O fato é que tudo que ele orientava com tamanha precisão e cuidado, já havia sido feito, o tempo havia passado enquanto ele estava ali, mas ninguém o interrompeu. Já bastava a doença que lhe interrompera os últimos dias e quase a vida toda.
Eles se despediram. Desligamos.
Ele, com o semblante cansado, pediu para voltar para o leito. A fisioterapia nos coloca em muito contato com o paciente. No movimento de apoiá-lo para retornar ao leito, Arlindo se apoiou em meus ombros e chorou. Estava eu lá, abraçada a um caminhoneiro chorão que não seguia nenhum estereótipo que eu imaginava e que me chamava, o tempo todo, como me chama meu pai: “filha… filha, eu não esperava que eles fizessem isso por mim, eles viajaram pra cá, de avião. De avião, filha, para ficar perto de mim! Eu não imaginava que eles me amassem assim!”
Posicionei-o de volta ao leito e ele me confidenciou que às vezes desviava caminhos na estrada, escolhia a rota que dirigia quilômetros a mais para passar em casa. Disse que às vezes os meninos estavam na escola e nem o viam, mas ele achava importante que as crianças soubessem que havia estado lá.
Ao passo que interpelei: pois é, Sr. Arlindo, dessa vez foram eles que viajaram quilômetros para que o senhor se sentisse mais perto de casa, mesmo sem poder vê-los, o senhor sabe que eles estão aqui.
Aquele caminhoneiro nada durão de sotaque sul-mato-grossense que sabia muito bem o que era sentir a ausência, foi então surpreendido por sentir a presença.
Enquanto eu fui surpreendida por sentir o presente. Que presente o senhor me deu, Arlindo!